De regra, predomina no sistema recursal brasileiro a proibição da chamada reformatio in pejus, princípio pelo qual é vedado reformar-se a decisão recorrida em prejuízo do recorrente.
Sem embargo disso, o artigo 64 da Lei Federal n° 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito federal, contempla a possibilidade da Administração Pública confirmar, modificar, anular ou, até mesmo, revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida para pior, se a matéria for de sua competência.
Essa prerrogativa decorre da chamada autotutela da Administração Pública, que lhe impõe o poder-dever de controlar os próprios atos, revendo-os e anulando-os quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade.
Neste sentido, de se considerar que os atos administrativos eivados de ilegalidade devem ser revistos e anulados, sob pena de afronta ao ordenamento jurídico. Assim, a autotutela abrangeria o poder de anular, convalidar e, ainda, o poder de revogar atos administrativos, estando prevista no artigo 53 da Lei 9.784/99, assim como na Súmula 473 do STF.
Todavia o parágrafo único do artigo 64 daquele mesmo diploma legal observa que, se da aplicação deste dispositivo puder decorrer algum gravame à situação do recorrente (reformatio in pejus), este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.
É neste momento que surge a possibilidade do administrado/recorrente invocar, em sede de alegações finais, a figura da decadência prevista no artigo 54 da Lei Federal sob comento, cuja dicção é a seguinte: “O direito da Administração de anular os atos administrativos em que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.”
Imagine-se, por exemplo, o caso de um recurso a um auto de infração lavrado no ano de 2001, fixando multa de R$ 2.000,00, em que a autoridade hierarquicamente superior àquela que multou o administrado decide, em sede de revisão, majorar aquele valor para penalidade mais severa de R$ 100 mil.
Se entre a decisão de primeira instância (mais favorável ao recorrente) até a decisão de segunda instância não tiver decorrido mais de cinco anos, válida seria a reformatio in pejus; mas se, pelo contrário, houver se vencido o qüinqüênio esta não haverá de prevalecer, ante a ocorrência da decadência.
Neste sentido, os precedentes judiciais abaixo reproduzidos:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. QUINTOS INCORPORADOS. PORTARIA N.º 474/87 DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. REVISÃO DO ATO. PARECER AGU N.º GQ 203/99. ART. 54 DA LEI N.º 9.784/99. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. NÃO-OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. A teor do art. 54 da Lei n.º 9.784/99, o 'direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé'. 2. Consoante a orientação desta Corte, o art. 54 da Lei nº 9.784/99 deve ter aplicação a partir de sua vigência, e não a contar da prática dos atos eivados de ilegalidade, realizados antes do advento do referido diploma legal. (MS 9.112/DF, Corte Especial, Rel. Min. Eliana Calmon) 3. RECURSO PROVIDO." (REsp-476.387, Ministra Laurita Vaz, DJ de 6.6.05.)
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DISSÍDIO NÃO COMPROVADO. ADMINISTRATIVO. REVISÃO DE ATO DE CONCESSÃO DE APOSENTADORIA. QUINTOS INCORPORADOS. DECADÊNCIA CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. AUSÊNCIA DE LEI. PRAZO QÜINQÜENAL. LEI Nº 9.784/99. INCIDÊNCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE. (...) 2. Embora a doutrina seja uníssona na afirmação do caráter relativo da não submissão da autotutela ao tempo, em obséquio da segurança jurídica, um dos fins colimados pelo Direito, é certo que, no sistema de direito positivo brasileiro, o poder estatal de autotutela não se mostrou nunca, anteriormente, submetido a prazos de caducidade, estabelecendo-se, além, ao revés, prazos prescricionais em favor do Estado. 3. A partir da edição da Emenda Constitucional nº 19, entretanto, significativas mudanças ocorreram no Direito Administrativo Brasileiro, culminando com a chamada 'Reforma do Aparelho do Estado', e com expressivas modificações no estatuto legal e constitucional do jus imperii . 4. Dando consecução aos imperativos do Estado Social e Democrático de Direito, a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinou, nos próprios da decadência, o poder-dever de autotutela da Administração Pública, que até então não se submetia a prazo qualquer. 5. A Lei nº 9.784/99 não tem incidência retroativa, de modo a impor para os atos praticados antes da sua entrada em vigor, o prazo qüinqüenal com termo inicial na data do ato. 6. Precedentes da Corte Especial (MS nº 9.112/DF e 9.157/DF, Relatora Ministra Eliana Calmon e MS nº 9.115/DF, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, j. 16/2/2005). 7. RECURSO IMPROVIDO." (REsp-600.884, Ministro Hamilton Carvalhido, DJ de 23.5.05.)
Conforme se pode observar acima, a autotutela prevista no artigo 64 parágrafo único da Lei federal n° 9.784/99 está limitada no tempo e, estando a Administração Pública obrigada a atuar com base na estrita legalidade, não pode inovar nesta matéria. Neste passo, parece curial que o artigo 54 da Lei federal n° 9.784/99 cria restrição temporal ao princípio da autotutela da Administração federal de rever seus atos, sempre que decida reformar para pior decisão outrora mais favorável ao administrado.
Concluindo, apesar da possibilidade de reformatio in pejus no processo administrativo, é pacífico e pleno o entendimento de que a mesma somente pode se operar dentro do lapso decadencial de cinco anos da data da publicação da decisão recorrida.