O objetivo do presente artigo é promover uma breve reflexão sobre o papel do juiz, enquanto agente prolator de decisões estatais que geram impacto social e econômico.
Trata-se de tema metajurídico, porque depende de certas condições que não guardam coerência com os métodos, a evolução ou a lógica da essência do direito (SIDOU, 2004, p. 562). É que a sentença produz efeitos lógicos e necessários no seio social que ultrapassam a res in iudicium deducta.
Para que as partes possam cumprir a determinação judicial oriunda da sentença, há uma movimentação social e econômica de adequação ao novo panorama que se instaura após o trânsito em julgado do comando sentencial. Assim, se o juiz condena um banco a pagar indenização, naturalmente o banco buscará recompor o seu patrimônio na cobrança de tarifas ou pressionando o aumento dos juros. A condenação das seguradoras importará no aumento dos prêmios dos seguros futuros. Se os juízes condenam o Estado a indenizar, a comprar remédios, estarão, de certa forma, influenciando nas dotações orçamentárias. As sentenças penais também podem gerar um determinado comportamento social, considerando a sua maior ou menor exasperação.
No quadro normativo contemporâneo o juiz é chamado a materializar o comando das normas legislativas que estão cada vez mais abertas. Assim, a título de exemplificação, o Código Civil de 2002 permitiu ao juiz dar uma interpretação social aos contratos, interpretá-lo ante a boa fé objetiva (arts. 113, 421 e 422 do Código Civil).
Também no Direito Penal, o juiz, ao dosar a pena, leva em consideração circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal), de alto teor subjetivo, e deve levar em conta se a pena é suficiente para reprimir o delito (respeitando sempre o balizamento prévio ínsito na lei). O juiz ao buscar estas respostas, passa a levar em conta os efeitos sociais da sua sentença, uma vez que a lei lhe reservou um considerável arbítrio (CAPEZ, 2004, p. 410) que acabará afetando a ordem pública, importante ponto para a própria credibilidade do Judiciário (NUCCI, 2005, p. 547).
Diante desse cenário, os juízes naturalmente preocupam-se com as consequências de suas decisões, sendo-lhes exigido um conhecimento multidisciplinar. A importância da multidisciplinaridade está em que a compreensão da organização e do funcionamento das estruturas sociais implica uma visão holística dos efeitos da sentença. Ao juiz, cada vez mais, é necessário conhecer comportamentos, hábitos, socializações, integração, neutralização das tensões, exclusão dos conflitos e repressão dos responsáveis. A visão totalizadora auxilia o juiz, pois lhe permite ver além da estreita realidade processual, em consonância com os demais fatores políticos e econômicos (PORTANOVA, 2003, p. 134). No entanto, há de se ter prudência, para que não sejam extrapolados os limites de suas funções, devendo o juiz se ater aos “princípios informativos do sistema” (THEDORO JÚNIOR, 2003, p. 121), fundamentando suficientemente suas decisões (art. 93, IX, da Constituição da República), deixando de impor valores eminentemente pessoais. O juiz que claudicar nesse mister verá suas decisões justamente reformadas pelos órgãos recursais.
Atenta a esta questão, a Fundação Getúlio Vargas desenvolveu um “Programa de Capacitação do Poder Judiciário” que vem sendo ministrado para magistrados de todo o Brasil, tendo como uma de suas disciplinas a “Análise Socioeconômica das Sentenças”. Assim é que Schuartz, Falcão Neto e Arguelhes escreveram um artigo intitulado “Jurisdição, Incerteza e Estado de Direito” , demonstrando que os juízes decidem os conflitos postos em juízo, adotando métodos práticos que podem ser divididos em duas vertentes: o consequencialismo e o automatismo judicial.
O consequencialismo, como já se pode notar, é aquele estilo de julgamento do juiz que reflete sobre as consequências metajurídicas, indo além do processo e adentrando no impacto social e econômico de suas decisões. Não é que o juiz possa julgar fora da lei, mas dentro de uma margem de abertura que a própria lei confere. Ao juiz torna-se permitido graduar as determinações, considerando as peculiaridades do caso concreto e os efeitos sociais e econômicos da sentença. Assim, nada mais faz do que decidir conforme as exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).
O juiz que segue a linha do automatismo entende que a lei já abrange internamente a questão do impacto socioeconômico. Não caberia ao juiz interpretar subjetivamente as consequências extraprocessuais, pois elas já foram discutidas pelos parlamentares durante o processo legislativo. O automatismo tem por escopo garantir a superioridade do ordenamento jurídico (SCHUARTZ et alii, ob. cit), maximizando a segurança jurídica. Leva-se em conta que os membros dos Poderes Legislativo e Executivo são eleitos para exercer suas funções, sendo a ordem jurídica nacional uma ordem acima da qual não existe nenhuma outra (HORTA, 2008, p. 35).
Ocorre que a própria ordem jurídica nacional promoveu uma abertura legislativa ao ativismo judicial, não podendo eventual instabilidade jurídica ser imputada ao Poder Judiciário. Há inúmeros exemplos de cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados que transformam o juiz em verdadeiro legislador do caso concreto. Isso ocorre porque o legislador ordinário atentou para o fato de que não consegue prever em abstrato, através do processo legislativo, todos os fatos sociais que merecem regulação jurídica, de tal sorte que o juiz se torna criador de normas, contrariando renomados juristas (LIMA, 1996, p. 306). O “poder criador” (NALINI, 1999, p. 275) do juiz deve levar em conta uma interpretação restrita dos conceitos de discricionariedade, prudente arbítrio e equidade, criando uma aplicação da norma com total fidelidade ao ordenamento jurídico.
Não se deve, pois, confundir a criação judicial com a criação legislativa (PORTANOVA, 2003, p. 132), pois aquela é primariamente individualizada e secundariamente geral, enquanto esta tem caráter geral e só atinge as pessoas individualmente quando ocorre o fenômeno da subsunção.
A realidade plural gera a necessidade de regulação de uma infinidade de fatos jurídicos, abrindo espaço para uma lacuna legislativa (intencional ou não). Daí a quantidade de normas abertas, principiológicas, permitindo ao juiz laborar em verdadeira normogênese, “tarefa complicada e penosa” (THEDORO JÚNIOR, 2003, p. 112).
Aliás, o legislador nada mais faz do que atuar em consonância com o sistema juspolítico brasileiro, considerando como ápice a Constituição da República de 1988, que é eminentemente aberta aos princípios e recheada de normas programáticas. Para Schuartz, há “descontrole” no florescimento de decisões judiciais baseadas diretamente em princípios constitucionais. Na verdade, o constitucionalismo moderno deve aplaudir as decisões judiciais que retiram diretamente da Constituição da República seus fundamentos, porque se trata de salutar renovação de técnicas interpretativas que colocam no topo normativo os princípios com esteio constitucional. Os princípios constitucionais não são evocações morais, mas normas jurídicas (NEGREIROS, 2002, p. 93), portanto, nenhuma sociedade plural deles pode prescindir (NEVES, 2002, p. 14).
Assim, ao juiz não só é permitida, como lhe é exigida a interpretação das normas, considerando princípios e valores de intensa fluidez, tais como a dignidade da pessoa humana, os fins sociais, as exigências do bem comum e a solidariedade, em decorrência da “moderna postura normativa” (THEODORO JÚNIOR, 2003, p. 119). O juiz não pode deixar de interpretar as leis, sociológica e teleologicamente, objetivando adaptar o sentido ou finalidade da norma às novas exigências sociais, com abandono do individualismo que preponderou no passado (GONÇALVES, 2007, p. 58). Portanto, o juiz deve interpretar a Constituição e as leis sem estar alheio ao sentimento social (BARROSO, 2002, p. 69).
O sistema jurídico muniu os juízes de um arsenal que lhes possibilita abstratamente desincumbir-se da pacificação dos conflitos (NALINI, 2006, p. 246) com uma ampla margem decisória, razão pela qual, quando o juiz se depara com uma norma jurídica e procura aplicá-la ao caso concreto, imediatamente lhe vêm em mente as consequências extraprocessuais de sua decisão. Então vêm também as perplexidades da magistratura, pois, estando o direito positivo cada vez mais aberto, o juiz se torna sobremaneira um ativista social, pois suas decisões acabam formatando a forma de agir de uma determinada comunidade. E isso pode ser mais ou menos pesado para o juiz, de acordo com sua história pessoal.
Quanto à formação acadêmica, o juiz é preparado com um conhecimento jurídico estático, isto é, com um conhecimento necessário para travar raciocínio de subsunção de fatos às normas (cuja origem remonta às faculdades de Direito), formatado para realizar a justiça “por um raciocínio silogístico, valendo-se da contraposição entre a premissa maior - a lei - e a premissa menor - o fato -, para se chegar a uma solução lógica” (PINHEIRO, 2002, p. 501). No entanto, a exigência diária da função o obriga a uma reflexão transcendental da realidade processual (PORTANOVA, 2003, p. 90), de forma que seu mister se torna um dente da engrenagem social. Então, aos juízes preocupados com os efeitos de suas decisões, toda interpretação do direito positivo é feita, levando-se em consideração as consequências sociais e econômicas, numa verdadeira análise de proporcionalidade.
Aliás, o ativismo judicial, ao contrário de ser autoritarismo, é observância do escopo constitucional, pois o juiz consequencialista visa adequar as normas aos fins sociais e às exigências do bem comum, buscando uma sociedade mais livre, justa e solidária. O automatismo, isto sim, pode transformar o juiz num agente autoritário, que aplica a lei sem observância dos princípios de justiça, porque o juiz deixará sua humanidade para ser mero aplicador de normas, “trata Adão e Eva como parte, Autor e Réu, e se esquece do Homem e da Mulher” (HORTA, 2008, p. 52).
Enfim, os juízes buscam a solução material para os problemas que lhes são postos. Assim, a maior dificuldade para os juízes não é decidir a lide, nos estreitos limites jurídicos. Isto, sem qualquer menosprezo, torna-se fácil. Difícil é tornar concreta a vontade da lei, considerando o impacto socioeconômico da sentença. Porque a lei, enquanto ato abstrato, não se efetiva materialmente senão após a aceitação social ou a imposição estatal.
Ao juiz tem sido suscitado o repensar da sociedade brasileira (o que é tarefa mais árdua do que enfrentar o excesso de trabalho que sói acumular-se nos fóruns). O ardor se faz porque o juiz é ser humano, dotado de sensibilidade, “o juiz não é um autômato, nem um burocrata, nem um servo cego do ordenamento” (NALINI, 2006, p. 247), mas a última esperança do cidadão.
Ser juiz, assim, é mais que saber Direito. É saber que o Direito não se realiza pelas palavras eloquentes da sentença, mas com as consequências sociais e econômicas que as decisões judiciais geram.Ser juiz é buscar a decisão justa.
De toda sorte, os juízes se tornam cada vez mais agentes políticos, pois disciplinam os efeitos das normas criadas pelos parlamentares, já que elas, por si sós, não são capazes de se autorrealizar, e é por isso que o juiz deve liberar-se dos contornos de um agente estatal escravizado à letra da lei, para imbuir-se da consciência de seu papel social (NALINI, 1999, p. 282).
O juiz moderno, por ter tanta margem de análise socioeconômica ao decidir (margem delegada pelo próprio sistema normativo), acaba sofrendo pressões de setores socioeconômicos insatisfeitos com as sentenças judiciais que lhe desfavorecem. Esses setores não aceitam que a judicatura interfira nas suas relações, como se o poder econômico, fático, fosse imune aos atos emanados da jurisdição. Mas, como se sabe, só recebem pedradas as árvores que produzem frutos.
Daí, então, ser necessária uma magistratura forte e coesa para garantir a efetividade dos princípios constitucionais, tornando a atividade judicante protegida de todo e qualquer atentado contra a liberdade de decidir conforme a ordem jurídica. Enquanto houver juiz cerceado no seu dever-poder de decidir, não haverá verdadeira democracia e liberdade pública, porque “não há democracia sem um Judiciário respeitado” (TEPEDINO, 2004, p. 549). Somente um juiz livre, independente e imparcial pode melhor refletir sobre as consequências de suas decisões, tornando-se um fiel agente de uma sociedade mais justa e solidária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. A responsabilidade social do jurista e o ensino jurídico: um breve diálogo entre o direito e a pedagogia. Diálogos sobre direito civil - construindo a racionalidade contemporânea. Organizadores: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
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SCHUARTZ, L. F.; FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda; ARGUELHES, D. W. Jurisdição, incerteza e estado de direito. Revista de Direito Administrativo.
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THEDORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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DO TEXTO E DO AUTOR:
* Artigo III Vitaliciar - Escola Judicial Des. Edésio Fernandes - EJEF.
** Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ.